autor Alexandre Giovanelli
“Quando a
mulher está para dar à luz, sofre porque veio a sua hora. Mas, depois que deu à
luz a criança, já não se lembra da aflição, por causa da alegria que sente de
haver nascido um homem no mundo. Assim também vós: sem dúvida, agora estais
tristes, mas hei de ver-vos outra vez, e o vosso coração se alegrará e ninguém
vos tirará vossa alegria. Naquele dia não me perguntareis mais coisa alguma.”
(João, 16: 21-23).
Essa é uma reflexão sobre os tempos atuais, dois mil anos após a mensagem
do Cristo. Muito se fala, atualmente, da degeneração de costumes da população.
Há uma percepção generalizada de uma falta de cuidado, de compaixão, com o
próximo. Principalmente nos grandes centros urbanos sente-se uma absoluta
frieza nas relações interpessoais. A competitividade está extremamente
arraigada nos corações das pessoas, fazendo com que se voltem exclusivamente
para si mesmos. Primeiro a busca pela realização pessoal e depois a busca por
mais realização pessoal. Sobra muito pouco a oferecer ao próximo. Essa é uma
crença de fato perniciosa, pois implode a própria sustentação da sociedade que
são os laços de solidariedade.
Por sua vez, temos os meios de comunicação que expõem de forma dramática
as mazelas sociais: corrupção, violência, crimes bárbaros, descaso de
instituições que deveriam velar pela saúde, educação e segurança da população.
Junte-se a isso um excessivo foco na sexualidade, em suas manifestações
doentias ou exageradas.
Contudo, a literatura espírita persiste em nos dizer que o planeta ruma
de uma condição de ambiente de provas e expiações para uma sociedade de
regeneração. Ou seja, deveria estar ocorrendo uma evolução da humanidade como
um todo. Segue, então, a pergunta: Porque a sociedade, ao contrário do
esperado, tem caminhado para o caos, a violência e a decadência de costumes,
como todos podemos perceber?
Creio que a pergunta esteja errada, pois já aponta para um caminho: a
certeza da degeneração, o que se coloca como um paradoxo trazido pela doutrina
espírita. Mas não há uma degeneração de costumes, então? Acredito sinceramente
que não. E aí vocês me perguntariam: mas como não? Tentarei explicar, mas o que
peço inicialmente é que aceitem refletir sobre uma pergunta parecida, mas que
muda a concepção preconcebida que temos da possível resposta. A pergunta é: Porque
temos a clara impressão de que a sociedade tem caminhado para o caos, a
violência e a decadência de costumes?
Para responder a essa pergunta é importante que relembremos alguns fatos relevantes.
Se voltarmos menos de 150 anos veremos o serviço humano compulsório como fato
consolidado pelas leis regulares. A escravidão era algo tão comum e difundida
que não só senhores de grandes fazendas tinham escravos, mas também a gente
abastada, como comerciantes ou funcionários públicos que viviam na cidade.
Aliás, o sonho de algumas pessoas era juntar dinheiro durante toda a vida para,
ao final, adquirir um ou dois escravos para serem alugados. Era um tipo de
“aposentadoria”. Por sua vez, o direito das mulheres à escolha de
representantes de governo não tem 90 anos e seu exercício amplo tem menos tempo
ainda. Até as primeiras décadas do século XX era comum encontraram-se crianças
de 10 anos ou menos trabalhando em fábricas e oficinas, em regimes de trabalho
pouco diferenciado de adultos, ou seja, em períodos que não raro superavam as
10 horas de atividades. Há cerca de 50 anos atrás a educação era algo ainda restrito
às camadas mais favorecidas da sociedade, de maneira que metade da população
era constituída de analfabetos. Neste mesmo período, algumas religiões como a
Umbanda eram durante perseguidas pela polícia. Os valores de igualdade e
liberdade anunciados pela Revolução Francesa viriam a ganhar corpo somente nas
ultimas décadas.
A conquista de liberdade em todas as suas múltiplas formas de expressão -
liberdade de escolha dos governantes, liberdade de expressão, liberdade de
opção religiosa, política e sexual – foi um movimento que demandou muitos
conflitos sociais e até sangue derramado. Da mesma forma se deu a conquista da
igualdade: gênero, sexo, etnia. É certo que mesmo hoje, temos muitos avanços a
serem feitos devido à perpetuação de valores culturais discriminatórios que
ainda persistem no imaginário social. Entretanto, nem de perto tais tendências
têm a força de décadas atrás. Atualmente, ninguém em sã consciência defenderia
a volta da escravidão, por exemplo. Da mesma forma não seria levado a sério
aquele que se opusesse ao voto feminino. Encontrar um adolescente analfabeto é
motivo de escândalo. O racismo ainda apresenta raízes ocultas e persistentes
nas camadas profundas da psicosfera humana, mostrando-se sorrateiramente nas
relações desiguais de oportunidades de trabalho e acesso à informação.
Entretanto, já não encontra eco nas publicações científicas sérias que
implodiram, inclusive, o conceito de raça biológica nas populações humanas.
É preciso lembrar que a luta por estas conquistas, fez com que houvesse o
choque natural com camadas sociais resistentes à mudança, porque cristalizadas
no preconceito garantidor de privilégios e do culto à vaidade. A resposta,
quase automática foi o acirramento de certas tendências, as quais extrapolariam
os limites do razoável. Assim é que o anseio pela liberdade acabou por levar à
autodestruição e ao desrespeito pelo espaço do outro. Uma ânsia pela liberdade
total tomou conta de todos, gerando um vale-tudo incapaz de perceber os ditames
morais e éticos que deveriam permear as relações humanas. A busca pela
igualdade promoveu o enquistamento de grupos sociais, acirrando, paradoxalmente,
as diferenças e fazendo delas bandeiras bradadas violenta e acintosamente
contra inimigos declarados. A justa luta pelos direitos individuais descambou
para a satisfação do indivíduo a qualquer custo, de maneira que a conquista da
felicidade individual desvinculou-se da preocupação com a felicidade da
coletividade. “Cada um por si”, tornou-se o lema dominante. O aumento da oferta
de serviços e produtos que deveria ser mero instrumento para que o homem
tivesse mais tempo e menos preocupações a fim de mergulhar nas perscrutações
internas e nas investigações das leis divinas tornou-se fim em si mesmo. A
partir disso consolidou-se uma eterna busca pela posse interminável de bens
materiais. Esta estratégia não anulou o vazio existencial do homem, que tem se
tornado uma verdadeira voçoroca em expansão à medida que o coração humano, tal
qual terra desnuda, recebe em seu imo mais e mais enxurradas de desejos a serem
satisfeitos.
O resultado tem sido angústia e desesperança existenciais que se espalham
rapidamente pela sociedade moderna, posto que as conquistas sociais alcançadas
não cumpriram as promessas de plenitude do ser humano. Falta algo. E esta coisa
é a fraternidade que ficou esquecida dentre os demais ideais levantados por
ocasião da revolução que marcou uma era - iniciada em França - e logo difundiu-se
aos quatro cantos do mundo. Parece que a humanidade ruma inexoravelmente para
uma encruzilhada em que decisões deverão ser tomadas. O passado mostrou a
importância da liberdade, mas trouxe consigo as inquietudes da responsabilidade
das ações humanas para com o próximo e a Natureza. A igualdade despontou como
condição sine qua non para as noções de justiça e equilíbrio social;
entretanto entrou em cena o problema complexo da convivência com as diferenças,
em espaços de manifestação cada vez mais reduzidos.
O caminho a ser escolhido deve necessariamente passar pela aprendizagem, mais
cedo ou mais tarde, dos laços de fraternidade. Os tempos atuais poderiam ser
traduzidos pelas palavras de Paulo, hoje mais do que nunca “Toda a criação
geme e sofre como que dores de parto até o presente dia” (Romanos, 8:22). A
sociedade atual, após todo o aprendizado acumulado, parece estar em dores de
parto, ansiando pelo nascimento de um novo Homem. Um Homem que seja mais amoroso,
mais cuidadoso, que busque a realização do “eu’ no encontro fraterno com o
“outro”.
Dentro deste contexto, estamos nós – os homens de hoje – tão mergulhados
nos mares conflituosos de época que não percebemos o longo caminhar da
humanidade e sua evolução moral e social nestes últimos séculos. Afogamo-nos em
nossas próprias angústias, dúvidas e lutas, de maneira a nos desesperarmos
perante os naturais expurgos sociais. Ao ouvirmos os lamentos repetidos pelos
companheiros de jornada, dilatamos nossa certeza de que a Terra ruma para o
caos e a destruição. Imersos que estamos nos problemas não percebemos que os
sinais atuais nada mais são que a dores de parto condizentes com o advento da
nova era. Mas em nossa cegueira, insistimos em perguntar: Porque a sociedade,
ao contrário do esperado, tem caminhado para o caos, a violência e a decadência
de costumes? E ao fazermos isso estamos a alimentar expectativas sombrias e
formas pensamentos deletérias. Afinal de contas, cremos ou não no Consolador
Prometido que nos diz que em breve passaremos do mundo de provas e expiações
para o mundo de regeneração?
Importa, agora, que façamos a nossa parte. Que cada um tome sua cruz e
siga os exemplos do Mestre, reformando primeiro a si mesmo. Aprendendo a amar e
perdoar. Fortalecendo os laços de solidariedade, através da tolerância e da
ajuda ao próximo, independentemente de condição social ou opção religiosa. O
mundo, a cada dia, exige mais fraternidade de todos nós. Aqueles que forem
capazes de aprender essa lição ensinada e exemplificada há mais de dois mil
anos, serão os eleitos deste novo mundo que se prepara para nascer. Porque
muitos estão a serem chamados, mas poucos serão os escolhidos...
Reflexão oportuna
ResponderExcluirVânia